Autora

Maria Lucrécia Scherer Zavaschi
Psicanalista da SPPA
O tempo
O tempo passará a ser matéria de pesquisa por parte dos psicanalistas, que já encontram repercussões da complexidade atual sobre o desenvolvimento da alma humana
“Jamais como quando amamos nos expomos ao sofrimento, jamais como quando perdemos um objeto amado ou seu amor somos tão desesperadamente infelizes.” Freud, “O mal estar na civilização”
Refletir sobre o tempo é uma matéria constante de nossa mente inquieta, sobretudo no limiar do jubilamento, quando o tempo é pouco diante da vigente ambição de viver mais e da incessante busca de conhecimento e de encontros.
Tempo, o que é? A dimensão na qual vivemos, mas qual? A dimensão de um bebê, que tem a vida pela frente, sobretudo se dispõe de uma mãe suficientemente boa, de um pai e de um verdadeiro lar? Ou de um adolescente vulnerável, cuja média de vida oscila entre 15 a 20 anos? Ou de uma senhora analista recém-jubilada?
Desde que a nossa espécie começou a perceber os movimentos do sol, da noite e do dia, notando a passagem das estações e das colheitas, e em especial após os babilônios inventarem o relógio, passamos a dimensionar melhor a passagem do tempo.
No entanto, não seria factível aqui abordar o tempo atual em todas as suas dimensões necessárias. Afinal de contas, em pleno século XXI, quando são inventadas máquinas para “poupar” tempo, com a vertiginosa avalanche de informações resultantes das recentes invenções da informática, quando são eliminadas as distâncias e as comunicações interplanetárias tornam-se instantâneas, a abordagem do tempo requer um aprofundamento maior.
Creio que o tempo passará a ser matéria de pesquisa por parte dos psicanalistas, que já encontram repercussões da complexidade atual sobre o desenvolvimento da alma humana. Para a minha idade, bem como para todas as outras, uma incursão nessa vereda sempre pode ensejar novos significados. Reflexões sobre o tempo têm me ocorrido com mais frequência, na medida em que avanço no tempo. Não podemos mais perder tempo de vida, pois falta muito menos tempo para viver em relação àquele que já transcorreu. Mesmo que hoje, como avós, tenhamos trinta anos mais do que tinham os nossos avós em sua época, é urgente tentar viver da melhor maneira possível o tempo que se descortina diante de nós.
No sumário balancete que faço no dia de hoje, percebo não ter desperdiçado muito das oportunidades oferecidas pela vida. À ideia do tempo, costumo associar momentos de alegria, felicidade, encontros com pessoas amadas, compromissos de trabalho e de estudo, assim como perdas, vazios e sofrimento. À ideia do tempo, associo ainda o futuro da nossa espécie. No entanto, não posso deixar de me interrogar quanto ao desejado aperfeiçoamento da humanidade diante do incremento da barbárie. Sinto aflição em relação ao crescente fanatismo ou quando precisamos enfrentar as fake news, as quais, ao estimularem a cizânia, estão contaminando a humanidade. Em geral, nós, humanos, seguimos nos alegrando com a oportunidade dos encontros amorosos, ao mesmo tempo em que continuamos temendo a violência, a solidão, a dor e a morte de nossos amados, assim como receamos o nosso próprio fim.
Felizmente, tenho tido afetuosos encontros, como o que vivenciei hoje com meus jovens colegas da Psicanalítica, responsáveis por prepararem nossos meios de comunicação à procura de mais conhecimento e, assim, gerarem novos encontros. No momento, penso que não quero perder-me em tantas correntes e tempestades de informação, pois elas podem me desorientar e distrair do essencial. Prefiro manter o foco na busca de encontros e de mais naturalidade no modo de levar a vida, com o objetivo de cultivar menos a dor das perdas inerentes à condição humana.
Nos dias atuais, compartilho com meus colegas a inevitável e breve reflexão sobre a beleza que pode ser vivenciada em instantes de encontro, em dimensões efêmeras de tempo, como, por exemplo, conhecer a obra de Fellipe de Moraes exposta na Casa de Cultura Mário Quintana, por ocasião da Bienal do Mercosul, cujo tema era “Trauma, Sonho, Fuga”. Tive um momento de grande felicidade por desfrutar de uma preciosa tarde de sol acompanhada da minha filha, durante o nosso périplo em torno das oferendas feitas pelos artistas a nós, visitantes, que então éramos possuídos por belezas e sensações inusitadas. Foi uma tarde de encontro, de “sonhos e fuga”, uma vez que estávamos emergindo de dois anos de reclusão e de sucessivas perdas.
Compartilho também do terno encontro com meus netos e seus desenhos coloridos, suas esculturas de massinha de modelar, seus brinquedos ruidosos e seus sorrisos iluminados. São também ternos os encontros com os meus filhos, noras, genro e netos, sempre experimentando intensos instantes de felicidade.
Agradeço aos vínculos com a medicina, com a psiquiatria e com a psicanálise, pois me permitem usufruir mais encontros pela vida do que decepções e abandonos. Também a psicanálise foi decisiva na elaboração das duras perdas que enfrentei até agora. Tanto na dimensão terapêutica quanto no aspecto profissional, a psicanálise tem sido, para mim, uma grande oportunidade de vida. Enquanto estiver lidando com a mortalidade, que cada vez se encontra mais próxima segundo a lei das probabilidades, o importante é desfrutar da enorme alegria proporcionada por uma série de instantes infinitos.