Autora

Viviane Dallazen Frozi
Membro associado da SPPA
Nada do que foi será
Estamos sujeitos aos efeitos da passagem do tempo, cuja percepção através da consciência apresenta nossa finitude
O recorte da música “Como uma onda” de Lulu Santos que uso como título para esse artigo traduz algo presente em todas as épocas: a notícia da mudança e a transitoriedade dos seres vivos e das coisas.
De forma inexorável, estamos sujeitos aos efeitos da passagem do tempo, cuja percepção através da consciência apresenta nossa finitude, ambivalentemente negada, mas reconhecida por meio da morte do outro. No consciente, lugar psíquico da causalidade linear, somos atravessados do nascimento à morte pela temporalidade; por sua vez, no inconsciente, o tempo cronológico é inexistente e, neste espaço atemporal, somos imortais, como nos advertiu Freud (1915).
Vivemos hoje, tanto no cenário coletivo quanto no individual, uma época de reverberações que esgarçam a malha tênue das certezas em uma rapidez avassaladora. Trata-se de transformações de toda a ordem, geográficas, políticas, econômicas, culturais, climáticas, ambientais, biológicas, sem esquecer as transformações simbólicas e vinculares, em que a subjetividade se inscreve.
Junto às mudanças, é inquestionável constatar que a revolução industrial e o capitalismo marcam a evolução do processo civilizatório, dando início a um salto de desenvolvimento, mas nada se compara ao tempo presente e ao período pandêmico vivido pela humanidade, momento catalisador de novas e importantes inovações na linguagem midiática e na comunicação digital, ambas consolidadas pela Internet.
Quem somos e como nos modificamos ao longo da história do mundo enquanto sujeitos contém um tempo tecnológico que nos constrói. Porém, é no olhar do outro que nos constituímos, tornando-nos dependentes de relações de afeto para apreendermos as conexões mais importantes, uma vez que o código binário não abarca a complexidade de nossa identidade.
A matéria da qual somos feitos, um corpo físico interligado a uma constituição psíquica, colide com a urgência do tempo atual, contrária à ética da consideração pelo outro. O tempo presente, caracterizado pela intolerância diante das diferenças, pelo imediatismo como recusa diante da espera, pela evitação da frustração e pelo hedonismo, leva consequentemente ao adoecimento do sujeito e de seus vínculos.
O que nos humaniza não combina com o imperativo categórico vigente que desconsidera a subjetividade, espaço em que os lutos pelas perdas decorrentes da passagem do tempo e da fragilidade da vida podem ser sentidos e elaborados, trazendo autenticidade às vivências e sua elaboração.
Em seu livro “O eu soberano” (2022), Roudinesco cita um mundo dissociado, dividido em fatias e categorias com ideias persecutórias, polarizações, desejos de visibilidade e inúmeras definições de identidades possíveis, as quais são chamadas por ela de “derivas identitárias”, conduzindo o sujeito a distúrbios narcísicos como um sintoma da atualidade. Dentro dessa ótica, revela-se um espaço reflexivo empobrecido, responsável por inviabilizar o reconhecimento do outro como um indivíduo que se distancia cada vez mais da alteridade. A saída encontra eco no consumo, nas mídias digitais, nos ideais de perfeição inatingíveis, na felicidade a qualquer custo, quando as práticas de redução do sofrimento psíquico e eliminação dos sintomas anestesiam as consequências de um sistema que desqualifica a importância do tempo em sua qualidade, necessário à constituição de um psiquismo mais integrado.
A frase “tempo é dinheiro”, atribuída a Benjamin Franklin, traduz a violência dessa desumanização da qual fala Antônio Cândido, quando afirma que “... temos que entender que tempo não é dinheiro. Essa é uma brutalidade que o capitalismo faz como se o capitalismo fosse o senhor do tempo. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida.”
Para os gregos, a personificação mítica do tempo era representada por dois deuses: Cronos, o que devora seus filhos, o deus do tempo quantitativo, e Kairós, o deus do tempo qualitativo, relacionado à forma através da qual se escolhe viver. Na espiral alucinante das mudanças, não há previsibilidade no futuro; construções, revisões, ampliações, rupturas, tudo faz parte do processo evolutivo e da efemeridade.
A psicanálise enfrenta um enorme desafio, um paradoxo que vai na contramão do tempo da atualidade, caracterizado pela urgência. O processo elaborativo requer tempo, e é um tempo interno, o tempo do sujeito do inconsciente; sua acessibilidade e consequente apropriação são da ordem atemporal, destituída de linearidade. É um tempo que liga o residual do passado com o “hit et nunc” para ressignificar, através do trabalho psíquico, todos os tempos do sujeito vinculados à memória e ao presente de suas experiências. Trata-se de um tempo qualitativo de Kairós para alfabetizar o que precisa ser conhecido e construir o que ainda não pôde ser representado.